O lado obscuro dos êxitos das seleções de base da Venezuela: jogadoras e ex-psicóloga da seleção denunciam abusos sofridos por ex-treinador

O ano era 2013 e uma forte seleção sub-17 da Venezuela, recheada de talentos e comandada por Kenneth Zseremeta, que estava neste cargo desde 2008, surpreendeu a todos com a inédita conquista do Sul-americano da categoria. Na ocasião, as venezuelanas deixaram para trás seleções de tradição como Brasil e Colômbia. Porém, apesar do título, ainda é sempre criada muitas reticencias com relação as seleções de base sul-americanas quando vão disputar algum mundial, já que são consideradas equipes mais fracas. Portanto, este foi apenas o primeiro passo dessa geração. A conquista da América do Sul!

No ano seguinte, 2014, contra todas as predições previamente criadas, lá estava mais uma vez a seleção sub-17 da Venezuela surpreendendo, mas desta vez surpreenderam o mundo. Com destaque absoluto de jogadoras como Deyna Castellanos, Gabriela García, Lourdes ‘kika’ Moreno, Sandra Luzardo, Michelle Romero, Daniuska Rodriguez, Barbara Serrano, entres outras, as venezuelanas conquistaram um histórico quarto lugar no Mundial sub-17. A medalha de bronze ficou muito perto, já que a vinotinto acabou perdendo a disputa de terceiro lugar para a Itália nos pênaltis, porém, ainda hoje, esta é a melhor colocação de um país da sul-americano nesta competição.

Lourdes ‘kika’ Moreno, Gabriela García e Michelle Romero comemora um dos gols no Mundial sub-17 de 2014. Foto: Martin Rose – FIFA/FIFA via Getty Images

Desta equipe triunfadora, algumas jogadoras permaneceram, por ainda possuir idade, na sub-17, já outras seguiram sua caminhada para a seleção sub-20. O panamenho Zseremeta seguiu como treinador da equipe e com isso seguiu conquistando grandes triunfos. No ano de 2016, mais uma vez, as venezuelanas venceram o Sul-americano sub-17, derrotando o Brasil por 1×0 na final, com gol de Deyna Castellanos. Nesta partida estiveram cerca de 44 mil torcedores no Estádio Metropolitano de Futebol de Lara, na Venezuela.

A seleção sub-17 havia se tornado uma grande sensação. As venezuelanas deixaram o estigma de ser um “patinho feio” e passaram a serem vistas como uma equipe forte. Tendo como grande expoente a atacante Deyna Castellanos, que vivia um momento majestoso e decidia partidas de forma única. Foi assim que Castellanos com cinco gols no mundial da categoria de 2016, levou seu país mais uma vez a conquista da quarta colocação na competição.

Deyna Castellanos comemora seu gol contra o Canadá no Mundial sub-17 de 2016. Foto: Christopher Lee – FIFA/FIFA via Getty Images

Dentro deste êxito que vivia a Venezuela, sempre surgia alguns questionamentos de como essa equipe, com pouca tradição no cenário do futebol feminino, passou a conseguir alcançar tantos triunfos de forma tão rápida. Porém, a resposta que aparecia era sempre a mais óbvia: por suposto um trabalho sério e consistente está sendo realizado.

O técnico Kenneth Zseremeta seguiu essa geração vitoriosa e logo após o Mundial sub-17 de 2016 se tornou o treinador da sub-20, visando assim também conseguir bons resultados. Porém, o ciclo de Zseremeta terminou no ano seguinte, após sua participação nos Jogos Bolivarianos de Santa Marta, no qual conseguiu a medalha de bronze. Ao fim deste torneio, o técnico declarou que muitas de suas atletas estavam desnutridas, essa frase ganhou uma grande repercussão e várias críticas caíram em cima ao panamenho. A Federação Venezuelana atestou que a demissão do treinador ocorreu pelos maus resultados em competições e em amistosos.

Kenneth Zseremeta em entrevista. Foto: Venezuelaaldia

Sendo assim, José Catoya assumiu o comando da sub-20, já Zseremeta seguiu sua vida no futebol feminino à frente da equipe venezuelana do Deportivo Táchira até 2018. Diante disso, poderíamos parar por aqui e finalizar a história de um treinador que, para muitos, revolucionou a história do futebol feminino da Venezuela e que foi demitido de maneira misteriosa e injusta. Porém, nas últimas semanas, muitas das questões que ficaram sem respostas durante esta história, acabaram vindo à tona e mostrando um lado totalmente obscuro que envolveu o comando de Zseremeta e sua comissão técnica.

A jogadora Barbara Serrano, que esteve na conquista do Sul-americano sub-17 em 2014 e no Mundial da categoria no mesmo ano, usou de suas redes sociais para relembrar os momentos vivenciados com sua seleção, porém, além disso, trouxe fortes denúncias contra Kenneth Zseremeta, acusando o ex-treinador de abusos físicos, psicológicos e até sexuais.

Através deste link é possível ler todo o desabafo da jogadora Barbara Serrano

Atualmente jogando nos Estados Unidos, Serrano conta que tomou coragem, após este tempo, de expor aspectos extremamente negativos vivenciados por este grupo de jogadoras muito jovens, na época com 14/15 anos. A jogadora afirmou que dentro das seleções femininas venezuelanas existiu sim homofobia e descriminação por parte da comissão técnica. “Muitas delas (jogadoras) foram assediadas, abusadas, ameaçadas e retiradas da seleção pelo simples fato de serem lésbicas”. Denunciando que muitas das jogadoras sofreram maus tratos psicológicos e físicos por parte do treinador Zseremeta.

Barbara também expôs que era muito difícil criar amizades com suas colegas de seleção, já que qualquer tipo de interação entre as jogadoras já era motivo de alerta para a comissão. “Não imagina o quão difícil que foi criar amizades dentro da seleção, porque para eles a razão sempre era que ‘estávamos tentar flertar uma com as outras”. Deste modo, em 2017, Serrano deixou de ser convocada para a seleção sub-20 por “questões disciplinares”, porém a atleta aponta que foram criados rumores de que ela estaria tendo um suposto romance com outra jogadora da seleção.

Logo após suas fortes declarações terem sido divulgadas e muitas pessoas tomarem conhecimento dos fatos, Barbara ganhou o apoio de suas colegas que fizeram parte desta geração. Jogadoras como Deyna Castellanos, Lourdes ‘kika’ Moreno, Michelle Romero e Franyely Rodríguez fizeram comentários apontando ainda mais o desgaste vivido.

Lourdes ‘kika’ Moreno, que foi a capitã venezuelana nas seleções sub-17 e sub-20 e atualmente joga no Deportivo La Coruña da Espanha, declarou: “Que bonito que já nenhuma sente medo, hoje em dia somos suficientemente maduras para darmos conta de todo o mal que passamos, mesmo conquistando todos os objetivos, vivíamos um inferno!”. Ecoando ainda mais estas declarações, a estrela dessa geração, Deyna Castellanos, compartilhou o relato de Barbara em suas redes sociais e comentou que sua colega “não poderia ter expressado toda essa situação de melhor maneira”.

As denúncias não se concentraram apenas com as atletas. Outra profissional que alega ter sido vítima de homofobia pelo ex-treinador, foi a ex-psicóloga da seleção feminina venezuelana, Alejandra Blasco. Em sua conta no twitter, a psicóloga conta que antes de dar início em seu trabalho na Federação da Venezuela, recebeu um “concelho” de um amigo que alertava: “Não diga a ninguém que você tem uma namorada e que você é lésbica, isso poderá ser usado contra você”.

Através deste link é possível ler todo o desabafo da psicóloga Alejandra Blasco

Foi assim que Blasco logo no início de seu trabalho se deu conta que existia pessoas homofóbicas dentro da seleção. “Enquanto eu pensava que estava avançando, comecei a encontrar com gente ignorante que constantemente tentava parar meu trabalho como psicóloga dentro da Federação. Essa pessoa se chama Kenneth Zseremeta”, apontou.

A psicóloga esteve neste cargo entre os anos de 2014 até 2018 e alegou que com o passar deste tempo a sua história ia ganhando cada vez mais traços de terror. Blasco conta que o profissionalismo de seu trabalho foi posto em xeque quando foi acusada de tentar “transformar” as jogadoras da seleção em lésbicas. “Era tanta sua homofobia que ele chegou a dizer que eu era uma ‘doente’ e que tinha condutas sexuais inapropriadas com as jogadoras. Nunca aconteceu isso porque jamais existiu provas, toda acusação sempre foi falsa”, explicou.

O panamenho Kenneth Zseremeta, que em 2019 esteve à frente da seleção da República Dominicana e atualmente é o técnico das seleções femininas do Panamá, até o fechamento desta matéria não deu nenhum tipo de declaração a respeito destas graves denúncias.

Para quem de fora acompanhava e aplaudia todos os êxitos que conseguiam essa seleção sub-17, nem podia imaginar o quão obscura e negativa era a vivência nos bastidores. Nos dias atuais é de uma grande indignidade e uma profunda tristeza tomar conhecimento de um desfecho tão triste para uma história que tinha tudo para ser enriquecedora e servir de exemplos aos demais países da América do Sul. Atletas que tão novas deixavam suas famílias e suas casas em busca de realizar seus sonhos, mas que, infelizmente, em seu dia a dia viviam verdadeiros pesadelos.

Podemos afirmar que o maior prêmio conquistado por essa geração de grandes jogadoras é que hoje em dia se sentem seguras o suficiente para denunciar estes tipos de abusos. O mais valioso é estar bem consigo mesmo e poder viver suas vidas livres de qualquer trauma causado por pessoas retrogradas e de mentalidade pequena. O Planeta Futebol Feminino reafirma sua luta constante contra qualquer tipo de preconceito e discriminação seja ela qual for.

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