Por João Augusto*
A história é delas, mesmo que as palavras aqui pareçam minhas. Todo encontro precisa de um caminho. A vida só tem razão de existir porque temos o outro. Tudo que produzimos, por nossas ações e sentimentos, é uma maneira de dialogar, de habitar com as outras pessoas.
Penso em duas imagens neste momento: a dos espaços considerados organizados da sociedade e de uma calçada com folhas e flores espalhadas pelo chão, numa escolha feita somente pelas plantas e pelo vento. Há na natureza a sabedoria de não excluir, censurar ou isolar. Há na natureza uma vida em tantas outras, que pulsam com uma beleza que nossa forma desigual de organizar deixou, por um longo tempo, trancada do lado de fora. E muitos encontros se perderam sem um caminho.
Mas os sonhos, como os ventos que agitam os campos, carregam em si a coragem para desorganizar o medo e abrir a passagem para a vida que um dia aprenderemos a amar. Desses campos em que a natureza nos abraça, há outros que não nos servem apenas para correr. Neles, há a expressão de uma vitória que ultrapassa a medida de todos os placares. São mulheres, meninas, donas de talentos tantos, que fazem de um esporte um poema suspenso no ar, revelando que as redes não guardam ou prendem a bola, e sim a libertam. Porque é dali, do fundo das traves, que ela deixa de ser um objeto de jogo para atravessar bairros, cidades, países, continentes e comunicar a milhões de pessoas que algo foi superado, vencido e que isso merece comemoração.
Delas, dessas incansáveis atletas, o correr e o driblar fluem ao avesso da linguagem quadrada e penosa que carregamos diariamente, sem sentido e sem sentir. Essa invenção, o futebol, que ontem nos deu tanta alegria, hoje tão maltratado por muitos, é embalado pelos pés de artistas, de bailarinas, de velocistas, de martas e marias, antes retratadas como poucas e vazias.
No Brasil, nas Américas, na Europa, no Oriente, na África, na Oceania, lá estão elas, salpicando a vida de belezas em lances e gols que significam muito mais que uma simples mudança na partida. São alterações, transformações em toda a sociedade, numa atuação de fôlego e ousadia, que desafiou e está deixando para trás inúmeros adversários.
Sim, essas mulheres, meninas estão assinando camisas, assinando contratos. Elas estão escrevendo o próprio nome! Muitas, pela primeira vez. E não se trata de letras num pedaço de papel. Mas de serem reconhecidas diante do público da vida. São fortes, guerreiras, inteligentes, resistentes, perseverantes. De todas as cores, ritmos e corações. São todas de um time só. Por isso sabem que estão vencendo juntas.
São como as folhas e flores que nos ensinam sobre a mais perfeita harmonia, desorganizando um mundo atrofiado, medido e anunciado em padrões que nos desnaturalizam, que nos assaltam, que nos alcançam, onde quer que estejamos. Um mundo sem luz, mesmo sob a luz mais bonita do dia. Um tempo em que proliferam jornais, sites abarrotados de notícias negativas, que não merecem ter exclusividade na lista das informações que formam (ou apagam) nossas emoções, que sufocam um grito de gol ou mil pedidos de socorro.
É preciso inventar a vida, como nos disse o poeta Ferreira Gullar. E, se olharmos bem, essas moças reinventaram, recriaram a mais esplêndida expressão de transmitir o que somos, porque cada uma delas existe como um poema existe. Mas viviam sem ser percebidas, um verso ignorado. Hoje, juntas, são a forma mais bonita de um campo de estrelas e de poesias; elas, que agora têm páginas escritas em línguas majestosas, todas igualmente simples e verdadeiramente reais, com seus infinitos sentimentos e magias.
Sim. Ainda ouvimos dores, censura, desigualdade, preconceito. Revolta, revolução. A bola, porém, vai atravessando um campo já mais livre de armadilhas. A bola que talvez seja a companhia mais amiga para uma criança. Está para elas como as nuvens para o céu. E tão lúcidas de suas capacidades, essas mulheres desorganizaram uma realidade que insistia em lhes roubar o destino. E, de tal maneira cruel, que dizia ser o único jogo permitido para um time feminino. Uma sociedade que já anunciava antes, bem antes, quem sempre iria perder, enquanto o apito fosse apenas um substantivo masculino.
Saber é ir adiante, é ir em busca cada vez mais dessa harmonia que desorganize a violência, a estupidez, o rancor, o ódio, tanto quanto precisamos encontrar a linguagem libertadora de um poema. Algo que esses outros não sabem que está muito além de rimas e textos ditos profundos ou sentimentais. Poesia, percebam, é tudo que nos faz sentir bem, tudo que fazemos longe da obrigação de sobreviver, o que realizamos por prazer, por encanto, por paixão, por brincadeira, por necessidade da alma. O chamado estado poético descrito pelo filósofo francês Edgar Morin, oposto ao estado prosaico. Mas não se preocupe com essas definições.
E quantas vezes tentaram e não sabiam que era impossível defini-las?! Essas capitãs maravilhosas, que representam todas as outras atletas, de todos os esportes, e todas as mulheres, seja qual for a sua profissão. Porque definir é apontar um limite, colocar um fim para o uso de algo, de uma ferramenta, de uma medida matemática. Definir nunca coube e nunca caberá para alcançar o ser humano. Para alcançar uma garota que descobre sua identidade, que abraça seu sonho e sabe a força que tem. Somos, igualmente, homens e mulheres, uma criação infinita em pensamentos, imaginação, desejos, capacidades. Não começamos e não terminaremos em nós mesmos. Há um pouco de tudo em nós. Há um pouco de nós em tudo. Fazemos parte daquela natureza de que falamos no início deste texto. Como uma roseira ou uma águia. Como um rio ou uma montanha. Como uma pantera ou um jasmim. A diferença é que eles e elas não julgam ou censuram, não disseminam o ódio, não buscam o acúmulo de lucro.
Se nós, de alguma forma, temos a capacidade de criar, de modificar a vida, a realidade, que seja pela linguagem da amizade e do respeito. Pelos verbos que vibram a paz e o amor. Que nossas palavras nasçam outras, melhores, mais corajosas, mais bonitas, de mãos dadas pelo afeto.
Quem sabe, logo ali à frente, aprendamos com elas, com as jogadoras de futebol, brasileiras, de todo o mundo, a encontrar o espírito que transforma cada minuto de uma partida em um tempo de perseverança, de talentos e glórias.
É esse brilho tão intenso, delas, que guardarei em poemas espalhados pelo mundo, quando ousarem dizer que a luz só pode nascer do alto. E nós diremos que a luz também nasce do pés, de quem está, por toda a história, iluminando e vencendo os incessantes jogos da vida.
João Augusto, 47 anos, é poeta, jornalista e um dos curadores da Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto. Já foi premiado em concursos de prosa e poesia. Tem cinco livros publicados, todos de poesia. O mais recente, “A última estrela tropical” (Editora Patuá). Já produziu e dirigiu documentários. Na imprensa, atuou como produtor, revisor, repórter, editor de jornal, gerente de reportagem, diretor e apresentador de rádio e TV. João escreve porque ama.